sexta-feira, 31 de outubro de 2008

As enfermeiras não choram...

"A D. Maria tem 47 anos... e um cancro do ovário. O marido, já
reformado, quis satisfazer-lhe o desejo de não morrer no hospital.

Têm uma filha, a acabar o curso na universidade: boa aluna, em altura
de exames... precisa de estudar e a sua mãe está a terminar os seus
dias de vida no quarto ao lado.
A D. Maria está em cuidados paliativos... e sabe disso! Já não quer
comer, bebe apenas alguns goles de água. Tem um soro para que lhe
possamos dar a medicação. Tem uma perfusão permanente de morfina, cuja
eficácia não é total. A barriga... como descrever? Tem uma colostomia,
que mal funciona... está inchada, como um balão que vai rebentar... e
de facto, começa a rebentar: abrem-se fístulas espontaneamente e as
fezes saem por todo o lado. O cheiro? Não consigo descrever! O corpo?
Pele e osso, para ser mais exacta! Há metástases no fígado, no
pulmão... a respiração é ofegante... já lá vão 5 semanas...
Diariamente desloco-me a casa da D. Maria, duas ou três vezes: para
dar medicação, para cuidar daquela barriga... para falar com ela, para
dar o apoio possível ao marido que tenta fazer o que sabe e o que
pode. O sofrimento? É grande... de todos!

Mas eu sou enfermeira: não é suposto que me seja difícil ver o
sofrimento dos outros! Tudo se torna mais difícil quando estou a sós
com a D. Maria, que me agarra na mão e me pede insistentemente... que
termine com a vida dela! Os apelos são cada vez mais frequentes, mais
desesperados: 'Por favor! Se tem compaixão de mim, injecte-me qualquer
coisa para terminar de vez com esta agonia! Pela sua felicidade, por
favor, acabe com a minha vida...' E eu tenho compaixão... mas nada
posso fazer! A dor não se consegue controlar, é impossível cuidar dela
sem lhe provocar ainda mais dores? O que faz uma enfermeira? Vai-se
embora, para casa, a sentir-se inútil... A sentir-se incapaz... A
ouvir repetidamente aquele apelo... e a desejar, embora lhe custe
muito, que a eutanásia fosse possível! Mas, se fosse possível... e a
praticasse, como iria para casa?

Mas para quê falar disto?... Os enfermeiros não têm sentimentos!
Saio dali, continuo o meu trabalho domiciliário: agora entro numa
barraca, onde chove dentro, onde há ratos, pulgas, lixo... onde o
cheiro nos faz perder o apetite... O Sr. José tem 87 anos e vive
sozinho. Tem uma úlcera varicosa. Tenho que fazer o penso. Não há
água... nem sequer as mãos posso lavar. Passo-as por álcool à saída e
lavo-as na casa do próximo utente.
Chove desalmadamente. Volto para o carro, pelo meio da lama. Carrego
as malas do material para os cuidados.
Mas para quê falar disto?... A minha profissão não é penosa!...



Próxima paragem: D. Joaquina, 92 anos, vive numas águas furtadas, 5º
andar, sem elevador. Subo as escadas de madeira, apodrecidas,
obscuras, com medo que alguma tábua se parta. Carrego com as malas do
material...
A D. Joaquina vive com uma irmã, naquele espaço exíguo. Teve uma trombose.
Tem úlceras de pressão. O tecto é baixo, inclinado, a cama está
encostada à parede. Para lhe prestar cuidados tenho que me pôr de
joelhos no chão e ficar inclinada.
Quando me tento endireitar as minhas costas doem... tenho as pernas
dormentes... pego nas malas, desço as escadas... continua a chover...
procuro o carro que tive que estacionar a 500 metros!

Mas, para quê falar disso? Os enfermeiros não se queixam...

Próximo desafio: a Helena! Toxicodependente... tem SIDA, continua a
consumir... com sorte, ainda lá encontro o traficante em casa... mas
as enfermeiras não têm medo!



Continuo: o Sr. Manuel é diabético, divorciado, tem 50 anos, foi
amputado de uma perna, vive sozinho num 3º andar. Há 2 anos que não
sai de casa: como fazer? Das poucas pessoas, com quem convive, são as
enfermeiras! Precisa de conversar... como lhe dizer que ainda tenho
mais 4, ou 8 pessoas e que não tenho tempo para estar ali a ouvi-lo?

Mas para quê falar disso? Os enfermeiros só dão injecções e fazem
pensos... tudo o resto é supérfluo!

Para quê falar da solidão do outro, da minha impotência, do pedido da
eutanásia, da chuva, do frio, do sol, do calor, do mau cheiro, das
minhas dores nas pernas, do material do penso a conspurcar o meu carro
(a seguir vou buscar a minha filha à escola!), das dores nas costas,
do medo, da insegurança, do ventre desfeito, da tristeza, da
compaixão...

Não, a penosidade e o risco devem ser uma ilusão minha... Não, as
enfermeiras não choram!
Mas sabem?... as lágrimas que mais doem são aquelas que não correm!"

Desculpem... o texto longo... mas sabem que isto faz parte de mim...


AH e PARABÉNS ao RU!

3 comentários:

Brida disse...

menina, que peso nas tuas palavras. que peso na vida dessas pessoas... incrível. um beijinho e um abraço. que não servem para contrabalançar essas lágrimas, vertidas ou não.

Anónimo disse...

a vida é a linha do horizonte. o passageiro secreto que nela vive. apenas sabe dizer. palavras de amor.

segura-lhes nas mãos. e não sintas o frio. espera pelo olhar.

um abraço

joao
osdiasdasnoites.

sim, as enfermeiras(os) não choram.

Anónimo disse...

procuro que situações dessas me ajudem a sentir muito bem com a minha realidade, fazendo o que posso e até onde posso.

Um abraço solidário